quarta-feira, 18 de novembro de 2009

AS TRÊS CATEGORIAS PEIRCIANAS E OS TRÊS REGISTROS LACANIANOS - II os três registros psicanalíticos

ARTIGO: AS TRÊS CATEGORIAS PEIRCIANAS E OS TRÊS REGISTROS LACANIANOS
DE: Maria Lucia Santaella Braga, Dpto de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP
ED: Revista de Psicologia da USP, vol.10 n.2 São Paulo 1999

"2. Os três registros psicanalíticos

2.1 O Imaginário

O imaginário é basicamente o registro psíquico correspondente ao ego (ao eu) do sujeito, cujo investimento libidinal foi denominado por Freud de Narcisismo.

O eu é como Narciso: ama a si mesmo, ama a imagem de si mesmo ... que ele vê no outro. Essa imagem que ele projetou no outro e no mundo é a fonte do amor, da paixão, do desejo de reconhecimento, mas também da agressividade e da competição. (Quinet, 1995, p. 7)

Na sua "Introdução ao narcisismo," Freud (1914/1968a) já havia percebido que não existe, no início, uma unidade compatível ao eu do indivíduo, devendo esse eu ser construído. No seu texto sobre o estágio do espelho, Lacan veio dar conta exatamente dessa constituição da função do eu que Freud mencionara sem desenvolver. É bastante conhecido o fato de que, para descrever a fase do espelho, Lacan se utilizou do esquema ótico, ou melhor, de um certo uso do esquema ótico, que fosse capaz de introduzir, além da constituição do eu, também a função do sujeito na relação especular.

O estágio do espelho se refere ao período em que o bebê, na idade entre seis e dezoito meses mostra grande interesse em sua própria imagem no espelho. Lacan explicou esse interesse singular tomando como referência a idéia de Bolk de que o

lactente humano é, de fato, desde a origem, em seu nascimento, um prematuro, fisiologicamente falando. Por isso está numa situação constitutiva de desamparo; experimenta uma discordância intra-orgânica. Portanto, segundo Lacan, se a criança exulta quando se reconhece em sua forma especular, é porque a completeza da forma se antecipa com relação ao que logrou atingir; a imagem é, sem dúvida, a sua, mas ao mesmo tempo é a de um outro, pois está em déficit com relação a ela. Devido a esse intervalo, a imagem de fato captura a criança e esta se identifica com ela. Isso levou Lacan à idéia de que a alienação imaginária, quer dizer, o fato de identificar-se com a imagem de um outro, é constitutiva do eu (moi) no homem, e que o desenvolvimento do ser humano está escondido por identificações ideais. É um desenvolvimento no qual o imaginário está inscrito, e não um puro e simples desenvolvimento fisiológico. (Miller, 1977, pp. 16-17 apud Santaella & Nöth, 1998, pp. 189-190)

A constituição do eu toma lugar durante o estágio do espelho e começa com o reconhecimento da identidade próprio do eu através da imagem especular em um jogo paradoxal, de oscilação entre o eu e o outro. Senhor e servo do imaginário, o ego se projeta nas imagens em que se espelha: imaginário da natureza, do corpo, da mente, das relações sociais. Buscando por si mesmo, o ego acredita se encontrar no espelho das criaturas para se perder naquilo que não é ele. Esta situação é fundamentalmente mítica. É uma metáfora da condição humana, uma vez que estamos sempre ansiando por uma completude que não pode jamais ser encontrada, infinitamente capturada em miragens que ensaiam sentidos onde o sentido está sempre em falta.

A correspondência do imaginário com a categoria da primeiridade não é difícil de ser percebida. Qualquer identificação é imaginária em todas as ocasiões. Identificar é obliterar a distinção entre o sujeito e o objeto da identificação. É dissolver as fronteiras que poderiam distinguir e separar o ego do outro. A identificação corresponde, portanto, a um estado monádico que almeja a totalidade, completude e auto-suficiência. O imaginário é uma mônada que se alimenta da miragem do outro, uma miragem na iminência da dissipação e da perda. Ser eu, sendo, ao mesmo tempo, o outro, é idílico mas também mortífero, pois um dos polos dessa pretensa unidade está sempre à beira do desaparecimento. Tal iminência de dissipação é uma das principais características da primeiridade.

2.2. O Real

O registro psíquico do real não deve ser confundido com a noção corrente de realidade. Para Lacan, o real é aquilo que sobra como resto do imaginário e que o simbólico é incapaz de capturar. O real é o impossível, aquilo que não pode ser simbolizado e que permanece impenetrável ao sujeito do desejo para quem a realidade tem uma natureza fantasmática. Diante do real, o imaginário tergiversa e o simbólico tropeça. Real é aquilo que falta na ordem simbólica, os restos que não podem ser eliminados em toda articulação do significante, aquilo que só pode ser aproximado, jamais capturado.

Lacan veio reconhecer que, para o ser falante, não há adequação na relação entre o objeto e sua imagem, entre as partes do corpo e a imagem que se tem dele. Como a nossa imaginação desordenada pode preencher sua função? Como o imaginário e o real podem ser articulados na economia psíquica do sujeito? Esta polaridade, esta fratura entre o imaginário e o real, entre o simbólico e o real corresponde exatamente à categoria da secundidade. O real é sempre bruto e abrupto. É causação não governada pela lei do conceito. O real resiste ao simbólico porque ele insiste, en souffrance, de tocaia para tomar de assalto o simbólico.

2.3 O simbólico

O registro do simbólico é o lugar do código fundamental da linguagem. Ele é lei, estrutura regulada sem a qual não haveria cultura. Lacan chama isso de grande Outro. O Outro, grafado em maiúscula, foi adotado para mostrar que a relação entre o sujeito e o grande Outro é diferente da relação com o outro recíproco e simétrico ao eu imaginário. Miller (1987) nos fornece uma apresentação bastante clara do simbólico, no que se segue.

O outro é o grande Outro da linguagem, que está sempre já aí. É o outro do discurso universal, de tudo o que foi dito, na medida em que é pensável. Diria também que é o Outro da biblioteca de Borges, da biblioteca total. É também o Outro da verdade, esse Outro que é um terceiro em relação a todo diálogo, porque no diálogo de um com outro sempre está o que funciona como referência tanto do acordo quanto do desacordo, o Outro do pacto quanto o Outro da controvérsia. Todo mundo sabe que se deve estar de acordo para poder realizar uma controvérsia, e isso é o que faz com que os diálogos sejam tão difíceis. Deve-se estar de acordo em alguns pontos fundamentais para poder-se escutar mutuamente. ... É o Outro da palavra que é o alocutário fundamental, a direção do discurso mais além daquele a quem se dirige. A quem falo agora? Falo aos que estão aqui e falo também à coerência que tento manter. (p. 22)

A correspondência do registro simbólico com a terceiridade é óbvia. O grande Outro em todos os seus sentidos é sempre terceiridade. É lei, mediação, estrutura regulada que prescreve o sujeito.

A análise fenomenológica dos registros psicanalíticos exemplifica uma característica importante das categorias universais de Peirce. Embora essas categorias sejam onipresentes, não podendo ser claramente separadas em qualquer fenômeno dado, há sempre uma predominância de uma sobre as outras. Assim, primeiridade, secundidade e terceiridade podem ser proeminentemente percebidas no imaginário, real e simbólico respectivamente."

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